Os 10 mantras mais murmurados em defesa do AO90

A defesa do chamado acordo ortográfico (AO90) deu origem àquilo que pode ser designado como acordismo, ou seja, um conjunto de enunciados com que se pretende defender as virtudes do AO90. Muitas vezes, é certo, essa defesa pode ir contra o conteúdo do próprio acordo: o acordismo é, então, um imenso texto constituído pelo acordo propriamente dito, pela Nota Explicativa e por tudo aquilo que se diz ou escreve a favor do AO90. O resultado raramente é coerente ou consistente.

Ao fim de três anos de debate, é possível, até certo ponto, tipificar os enunciados produzidos, reduzindo-os a pequenas frases que, por sua vez, constituem um conjunto de mantras ou uma espécie de ladainha, mais instintiva que pensada. Na sua base, estão o deslumbramento pela lusofonia, alguma vulgata linguística, meia dúzia de truísmos e dois ou três erros.

Ser acordista não é, evidentemente, o mesmo que ser mentiroso, mas é, no mínimo, andar enganado e, consequentemente, contribuir para a propagação de ideias erradas.

Esta decálogo servirá para mostrar a fragilidade – ou a vacuidade – argumentativa do acordismo, mas é importante, sobretudo, não perder de vista que o verdadeiro problema está na manutenção do AO90. O acordismo, como conjunto de dogmas, serve para dar vida a uma religião que prejudica o mundo da língua portuguesa.

Vamos aos mantras, então. A ordem é arbitrária.

1 – O AO90 já está a ser aplicado

Face às críticas, os acordistas recorrem frequentemente a esta frase. No fundo, trata-se de utilizar o argumento do “facto consumado”, reforçado, frequentemente, pela referência à quantidade, com expressões como “a maioria dos órgãos de comunicação social e das instituições públicas já aplica”. Ora, é evidente que o facto de uma coisa existir não é garantia de que seja virtuosa. No fundo, somos obrigados, afinal, a reconhecer que este mantra nem sequer corresponde a um argumento.

O Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) tem juntado a esta frase a expressão “sem problemas de maior”. Poder-se-ia louvar um resquício de honestidade no reconhecimento da existência de problemas, não fosse o resto. O problema é que há problemas de maior. Fica para outros mantras.

2 – Isso, dantes, já existia.

Sempre que alguém se lembra de assinalar algum problema presente na concepção ou decorrente da aplicação do AO90, vem sempre um acordista dizer que esse problema já existia.

Grafias duplas? Já havia. Erros ortográficos? Também já havia. Há problemas no AO90? Também havia no acordo de 1945. As ligações à etimologia perdem-se? Mas isso já se verificou com os anteriores acordos.

A questão não é nenhuma destas. O que interessa verificar é que o AO90 aumenta os problemas. Convenhamos, então: desvalorizar um problema afirmando que é parecido com outro anterior não faz desaparecer nenhum dos dois. Na pior das hipóteses, aliás, faz surgir dois problemas, quando havia só um.

De qualquer modo, há uma diferença entre um acordo ortográfico com alguns problemas (o de 1945) e um outro, o AO90, que é um problema.

3 – Facilita a aprendizagem da escrita.

Defendem os acordistas que o AO90, ao adoptar o chamado “critério da pronúncia”, aproximando a escrita da fonética, facilita a aprendizagem da escrita.

Em primeiro lugar, uma tal concepção é, entre outros defeitos, antipedagógica. Admitindo que uma matéria é difícil, há que criar as condições para que um aluno a possa aprender. Este espírito tem estado presente em várias reformas educativas e pode ter na sua origem o ideal generoso de levar o saber às classes menos privilegiadas, quando, afinal, está a privá-las desse mesmo saber, porque simplificar é, muitas vezes, trair.

O debate acerca das relações entre a aprendizagem da escrita e a opacidade/transparência da ortografia é muito interessante. Alguns, mais apressados, limitam-se a referir estudos que apontam para as vantagens de uma ortografia transparente (de modo simplista, aquela em que a uma letra corresponde apenas um som). Não me espantaria que, a seguir, se viesse a defender a simplificação da conjugação verbal, uma das grandes riquezas e, portanto, complicações da língua portuguesa (os livros para ensino de Português a estrangeiros já excluem a segunda pessoa do plural, como se, efectivamente, o seu uso se tivesse extinguido no país todo, o que, mesmo que fosse verdade, não faria sentido)

Os poderes executivo e legislativo, caracterizados, na melhor das hipóteses, por uma extrema leviandade, têm escolhido o caminho do facilitismo, de uma maneira geral, até porque acreditam que poderá ter consequências positivas nas estatísticas.

Sem prejuízo de outras opiniões, e voltando à questão da aprendizagem da leitura, há um estudo de 2004 que reafirma uma posição assumida em 1994: “In countries with strong economies and high levels of health and adult literacy, most students become competente readers (Elley, 1994). Lack of access to written materials, lack of parental involvement in promoting literacy, and lack of educational opportunity can prohibit literacy development before any modulating effects of orthographic transparency can take hold.” Parece-me que, em 2014, continua a fazer sentido.

4 – A língua é dinâmica.

Este mantra resulta de um truísmo. A frase pode ser substituída por outras como “A língua é um organismo vivo” ou outra metáfora biológica qualquer. Deste ponto de vista, qualquer modificação é aceitável, como é inevitável o coração bombear sangue ou uma mão recolher-se, por reflexo, quando se toca num objecto quente.

Ora, se é certo que a língua está sempre sujeita a mudanças mais ou menos imprevisíveis (e que se poderiam confundir, portanto, com factos naturais, como o movimento do girassol ou a época do cio do rinoceronte), não é menos verdade que o uso da língua é sempre um acto intelectual e, num país civilizado, deverá ser um acto o mais informado possível. Nesse mesmo país civilizado, um cidadão responsável poderá perceber, por exemplo, a necessidade de conservar consoantes mudas ou janelas manuelinas.

Assim, os acordistas, acreditando que não se deve interferir com a natureza, encaram as modificações impostas pelo AO90 como uma consequência ou um sinal do dinamismo da língua, reduzindo, mais uma vez, o complexo ao simplista: há um novo acordo porque a língua muda (na realidade, a língua poderá mudar porque há um novo acordo).

O AO90 foi uma decisão puramente política. Entre 1945 e 1990 não houve nenhuma mudança linguística de vulto que justificasse as alterações ortográficas propostas. Os autores do AO90 limitaram-se a alterar critérios, em nome de uma aproximação ortográfica.

Como argumento de autoridade, basta citar o Parecer do ILTEC enviado à Assembleia da República no dia 21 de Março de 2013: “Há coisas erradas por quem defende o AOLP90: que cria necessariamente e por si só uma norma internacional, que elimina as diferenças entre as variedades do português, que é reflexo da mudança linguística, que acaba necessariamente com a existência de várias versões para o português nas traduções e nas ferramentas informáticas, entre outras.” Relembre-se que o ILTEC é favorável à aplicação do AO90.

5 – Os efeitos negativos do AO90 são inexistentes ou inventados.

Os críticos do AO90 têm reunido diversos materiais que provam, à saciedade, que o AO90 tem aumentado os problemas ortográficos, para além de haver indícios muito fortes de que poderá provocar efeitos (im)previstos na pronúncia de palavras, acentuando a tendência portuguesa para o fechamento vocálico.

Quando, na melhor das hipóteses, um acordista reconhece a existência do problema, limita-se a recitar o segundo mantra.

Entretanto, na Comunicação Social, na publicidade e nas escolas, o caos ortográfico instala-se. A referência às duas primeiras áreas serve, também, para lembrar que aprendemos a escrever com tudo aquilo que lemos, o que quer dizer que um erro pode propagar-se com extrema facilidade, ainda mais num país com baixos níveis de literacia. Não é por acaso que há, entre outras, uma praga de “contatos”.

Mais uma vez, o debate limita-se, por parte do acordismo, a uma fuga. Por uma vez, seria interessante que os acordistas analisassem alguns dos problemas apontados: se realizarem, no google, uma busca com a expressão “choldra ortográfica”, depararão com o ingente trabalho do João Roque Dias.

6 – Voltar atrás seria prejudicial.

Colocados perante a hipótese de suspensão ou revogação do AO90, há muitos acordistas que se assustam com os custos económicos e educativos. Ao fazê-lo, curiosamente, abandonam a defesa das virtudes intrínsecas do AO90, que deveriam corresponder à única razão para o impor.

No parecer do ILTEC já citado, chega-se a defender que “os prejuízos (…) para a própria credibilidade do sistema político seriam incalculáveis.” Poderia parecer estranho que uma instituição dedicada à Linguística se dedique, sobretudo, à política, mas é justo que assim aconteça, já que vivemos num país em que os políticos interferem nas questões linguísticas.

O AO90 é, na verdade, prejudicial, pelo que a sua suspensão é o mínimo exigível. O sistema político, mais do que uma vez, foi obrigado a corrigir os monstros que ele próprio criou: há uns anos, a gramática generativa foi retirada dos programas de Português; recentemente, num raro assomo de bom senso, o Ministério da Educação resolveu reintroduzir os clássicos da literatura no Ensino Secundário. O problema não esteve, em ambos os casos, na suspensão, mas na manutenção de decisões erradas que afectaram milhares de estudantes, à semelhança do acontece com o caos ortográfico em que vivemos.

7 – Querem voltar a escrever “pharmácia”.

Alguns acordistas mais distraídos fazem de conta que os críticos do AO90 querem regressar a ortografias anteriores. O objectivo, em nome da estabilidade e da qualidade ortográfica, é manter em vigor o acordo ortográfico de 1945. As referências à “pharmácia” e ao “abysmo” servem, apenas, como ruído.

8 – O AO90 carece de ajustes.

São vários os acordistas que afirmam que o AO90 precisa de correcções e ajustes, o que não deixa de ser estranho, quando, ao mesmo tempo, declaram que o mesmo AO90 resultou de debates aprofundados, sempre na presença de especialistas prestigiados.

As inconsistências científicas do AO90 foram já demonstradas por inúmeros pareceres, estudos e análises. O AO90 é um instrumento com tantas deficiências na sua concepção que só poderia dar maus resultados na aplicação, confirmando o provérbio “O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.”

Na realidade, a referência à necessidade de revisões ou ajustamentos não passa de pura retórica, com o objectivo de fingir que se está a debater, numa fuga em tom menor.

9 – Agora, há uma ortografia única.

Esta é uma das afirmações mais repetidas pelos praticantes do acordismo, que acabam por ser contrariados pelo ILTEC, como se pode ler na citação feita no âmbito do quarto mantra. Para além disso, é verdade que, no AO90, só existe referência a “aproximação ortográfica”.

Nada disso tem impedido declarações acerca da ortografia unificada ou de um mundo lusófono povoado de edições únicas e ortograficamente unas.

Para além do ILTEC, os próprios factos têm desmentido tais asserções: com o AO90, continua a haver, de facto, uma ortografia portuguesa e uma ortografia brasileira. Assim, a maior parte das palavras continua a escrever-se da mesma maneira, algumas palavras passaram a escrever-se do mesmo modo, outras continuam a escrever-se de maneira diferente e outras ainda passaram a ter grafias diversas. Conclusão: destapou-se de um lado e tapou-se do outro.

Entretanto, criou-se um caos escusado, em nome de um objectivo que, afinal, não foi atingido.

10 – Não somos donos da língua.

A existência de algum complexo de culpa por termos sido um país colonialista e a consequente sobrevalorização da ideia de lusofonia, erigida em intocável Arca da Aliança, aliada ao culto de vagos interesses económicos e estratégicos leva a que este mantra seja recorrentemente proferido. As referências subsidiárias a manifestações de xenofobia fazem parte deste folclore ruidoso, próprio de quem não tem argumentos.

É evidente que não somos donos da língua portuguesa. Seremos, então, condóminos. Provavelmente, vivemos tão afastados uns dos outros que talvez já estejamos em moradias separadas. Nada contra um debate sério e profícuo, desde que não passe por entusiasmos e sim por verdadeiras ideias, o que não tem acontecido.

Seja como for, nada contra reuniões de condomínio, desde que haja limites muito claros relativamente àquilo que se passa dentro da casa de cada um dos condóminos: não somos donos do prédio, mas somos proprietários de um apartamento. Limitemo-nos a ser bons vizinhos.

No próximo dia 28, o AO90 volta à Assembleia da República. Todos estes mantras são repetidos, também, por demasiados deputados que, ignorando levianamente as suas responsabilidades e obedecendo a interesses alheios aos dos cidadãos, continuam a não querer resolver um problema por eles criado. Parafraseando, até certo ponto, o ILTEC, os prejuízos para a credibilidade do sistema político serão incalculáveis, se a Assembleia da República não suspender, no mínimo, a aplicação do AO90. Se não o fizerem, os deputados continuarão a ser cúmplices de mais um crime contra a Educação e contra a Cultura, não porque ponha em causa a imagem de D. Afonso Henriques ou dos heróis dos Descobrimentos, mas pela simples e terrena razão de que é um atentado à estabilidade ortográfica, necessária ao uso e à aprendizagem da língua portuguesa. O resto são mantras.

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  7. Rui Miguel Duarte diz:

    Condóminos, senhores do nosso uso, e deveríamos assumir a condição de primus inter pares, como a variante britânica de Oxford na ONU, o espanhol de Espanha ou o Francês de França

  8. Eduardo diz:

    Poderemos nem ser donos da língua, apesar de sermos seus criadores e, portanto, pioneiros na sua utilização. Mas importa ter bem claro que somos e devemos continuar a ser senhores únicos do uso que dela se faz em Portugal. Não é questão de xenofobia, é de soberania.
    Em tudo o mais, subscrevo sem reservas.

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