Intendente Pina Manique, segundo Raul Brandão

«(…) misto de conselheiro Acácio e de polícia secreto. Eis aqui o homem… O que ele produz é espanto. Este sim, é compacto – é maciço – é sincero. Dos ofícios, da papelada, da frase gorda e caminhando com aparato atrás duma charanga, das suas palavras e das suas obras, conclui-se essa nítida verdade: foi um antepassado: encarnou uma época: foi um ser inteiriço, colocado no próprio meio, desenvolvendo à larga todas as suas faculdades. Chega-se a isto: a admirá-lo. Não tem uma única falha: é o representante autêntico do português grosseiro e mandão – em casa de seu sogro. Escarra grosso. Devia ter sido feliz, exuberante, solene, tenaz e inquisitorial. Mete medo. Teve às suas ordens cárceres, baionetas, esbirros; fez sofrer muita
gente de coração. Estou a ouvi-lo exclamar: –  É jacobino! é nação! – com os olhos arregalados de pavor. E esse pavor sente-o até à medula do seu ser. Para ele não existem dúvidas na terra: caminha sem hesitação, num traço recto e lógico. Faz respeito. Seu ideal de sociedade, é o de um povo servil, rei no alto e na corte, literatos pedinchões, fazendo versos nos anos dos fidalgos e em baixo a canalha. Aparecem bandos de crianças com fome nas ruas? Casa Pia com elas. E muita ordem e respeito, muito temor a Deus e a El-Rei Nosso Senhor, nada de livros nem de maquinações filosóficas, bons esbirros, e cárceres espessos para quem se atreva a pensar. De mais algumas estradas, trabalho, e cada qual em sua casa à noite com a família a rezar o terço. Remexeu tudo, vasculhou na roupa suja duma época e proibiu-se de escantilhão Voltaire e as poesias do abade de Jazente. Dizia condenando um livro adoptado para ensinar a lingua francesa: «Não é próprio adoptar as instruções dos indivíduos duma nação tão prevaricada, infeccionada de errados princípios». De toda a parte Ihe surgem conspiradores e conspirações. «Os fins destas reuniões fazem-me tremer» (16 de Agosto de 1794). E tremia. O melhor era acabar de vez com leituras, com a inofensiva e mazorra Gazeta de Lisboa. Ele irrompe da papelada e dos ofícios
intacto, completo, admirável, com a malta dos esbirros sujos e famélicos à roda. Lendo-o surge o homem a falar de papo, no tom de voz decisivo de quem tem o hábito de mandar, com a omnipotência dos que se sentem temidos. Passou por grandes
aflições – desculpemo-lo. Atrapalhou-se em contas, a ponto de ser necessário dar-lhe tudo por liquidado: não pensemos mais nisso, porque a um homem que viveu no terror perpétuo dos jacobinos, não lhe era possível descer à minúcias dum exacto guarda-livros. Em Manique é ainda o passado que rosna e mostra os dentes… Debalde, debalde.»

El-Rei Junot, Raul Brandão

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