Madrugada

Entre as memórias da minha infância, Tentúgal é um lugar quase mágico, como são todos os cenários das memórias que dependem mais daquilo que nos contam do que daquilo de que nos lembramos. Devia ter três ou quatro anos e subia para o quadro da bicicleta do meu avô e aquela viagem até ao café, que ficava mais abaixo na estrada Coimbra-Figueira, era um cortejo em que eu era o rei, saudado e adorado pelas vozes cantantes de todos aqueles por quem passava. Havia sempre uma frescura no ar que agora atribuo à hora matinal em que decorria esta viagem e não há hora mais matinal do que aquela em que somos o centro do universo.

Entrar no café dos meus avós era mais uma prova de que o mundo fora feito à minha medida, porque me era permitido entrar no território mais desejado por qualquer criança, o interior do balcão. Ainda assim, os meus limites iam mais além e tinha mesmo o poder de penetrar no reino mais desejado: a sala onde ovos, farinha, manteiga e outros ingredientes igualmente misteriosos se transformavam em sabores, a sala em que reinava um calor tão adocicado que poderia satisfazer toda a gula só de respirar. Aí estavam a minha avó, sempre com o cabelo apanhado num puxo, como ainda hoje, e o meu avô, já careca, praticante involuntário de um budismo imprescindível, face à tensão nervosa e ciumenta da mulher. Ainda hoje, comer uma queijada de Tentúgal feita pela minha mãe ou pela minha avó é a prova de que é possível reviver vidas passadas: pela porta do palodor, o sexto sentido dos gulosos, chego a ouvir a ternura risonha do meu avô.

 A casa dos meus avós, no centro da vila, que era, então, aldeia, numa despromoção desde sempre recusada pelos seus habitantes, era um universo mais do que infinito, como acontece enquanto não descobrimos a mortalidade. Pelo meio das árvores e escondido atrás de couves que eram, então, gigantescas, derrotei inúmeros malfeitores e ajudei a criar um mundo melhor que o resto da humanidade tem desaproveitado.

Na procissão do Senhor dos Passos, fui de São José, graças aos bons ofícios dos meus avós. Assim, para além do trajo costurado pela minha avó e tão imaculado que só podia ser anterior à fuga para o Egipto, estava devidamente dotado de uma auréola que teimava em desmentir a minha santidade, tal era a sua tendência para descer à terra. O meu avô, que tinha o poder de transformar bocados informes de madeira em formas que estavam escondidas, tinha criado miniaturas de todos os apetrechos que faziam de mim um carpinteiro liliputiano, como um pequeno martelo ou uma serra de brincar. No entanto, ao contrário do santo, a minha preocupação não estava relacionada com a hipótese de que a minha esposa pudesse ter tido algum comércio carnal fora do casamento. Estava revoltado, isso sim, com as constantes paragens da procissão, o que me levava a puxar constantemente a manga do meu avô e a ordenar-lhe que andasse. A verdade é que, no quintal, estavam vários bandidos que aguardavam, impacientes, uma derrota certa.

Adenda: depois de a minha mãe ter lido este texto, fiquei a saber mais duas coisas: em primeiro lugar, a procissão era dedicada não ao Senhor dos Passos, mas a Nossa Senhora do Carmo, figura umbilicalmente ligada a Tentúgal, devido ao convento onde as carmelitas fabricavam os pastéis. O próprio António Nobre, na “Carta a Manuel”, faz referência a um mundo em que a gula se aproxima de um suave erotismo:

“…Tentúgal, toda a rir de casas brancas! / A boa aldeia! Venho cá todos meses/ e contrariado vou de todas essas vezes. / Venho ao convento visitar a linda freira, /Nunca lhe falo: talvez hoje a vez primeira…/ Vou lá comprar um pastelinho, que eu bem sei/ que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei:/ Assim o pastelinho, ó ventura sonhada! / Tem de recheio o coração da minha amada. / Abro o envelope ideal. Vamos a ver…-Traz’ – Não! /Regresso a Coimbra só com meu coração”.

Outro dado enternecedor que eu desconhecia: a minha presença nesta procissão resultou de uma promessa feita pelo meu avô. Prometeu ele que, se o meu pai, seu genro, voltasse vivo e são da Guerra Colonial, eu iria de São José. O facto de viver afastado de qualquer fé religiosa não me impede de reconhecer nesta atitude a grandeza e a generosidade presentes, tantas vezes, nas vidas aparentemente pequenas de tantos anónimos. Para além disso, é uma boa maneira de lembrar que há cinquenta anos começou uma guerra que, como todas as outras, podia ter sido evitada, não fosse, entre outras razões, a teimosia insensível de um ditador que, tal como essa guerra, ainda continua a assombrar-nos, mais do que pensamos.

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2 respostas a Madrugada

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  2. Ana Maria Sá diz:

    Está delicioso este teu texto, António. Sempre que falamos na infância há vivências que nos unem. Na minha aldeia havia também os passeios de bicicleta, as procissões, as promessas, os figurantes. Era um tempo de inocência, de um tempo sem fim.
    Beijos.

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