Quando a Esquerda é contra a Educação e contra a ortografia

heloisa-929aPor ser de Esquerda, acredito que a Escola deve servir, o mais possível, para que todos possam ter acesso, entre outras coisas, a um conhecimento o mais aprofundado possível de matérias fundamentais para o exercício de uma cidadania completa e responsável, sendo que um cidadão não se esgota na profissão ou na classe social, pelo que é tão importante que possa aprender Música como Matemática.

Ser de Esquerda, para mim, não consiste, portanto, em defender a “facilitação” de nenhuma matéria, mas a criação de condições para que a maioria possa ter acesso ao saber, independentemente da sua complexidade. Não seria mais fácil dizer às criancinhas que é o Sol que anda à volta da Terra, porque é isso que se vê a olho nu? Seria, com certeza, mas a ciência diz-nos outra coisa, por muito complicado que seja explicar isso contra aquilo que os olhos vêem.

Vem isto a propósito das declarações de Heloísa Apolónia em defesa do chamado acordo ortográfico (AO90): para além de insistir na declaração simplista de que a língua é dinâmica (reproduzindo um dos mantras acordistas), defende que “a simplificação das regras de escrita constitui (…) uma forma de democratização da língua portuguesa” (outro mantra).

Trata-se de uma posição lamentável, que não é estranha a uma Esquerda que, mesmo que possa ter as melhores intenções, acaba por escolher o caminho do facilitismo, quando aquilo que é fundamental é criar um sistema educativo em que todos possam ser sujeitos à mesma exigência. Na realidade, simplificar não é democratizar, é o contrário: é um elitismo disfarçado de generosidade. Defender o facilitismo é, afinal, colaborar com quem pensa que não tem importância aumentar o número de alunos por turma ou que se deve reduzir as reprovações a qualquer preço.

Tudo pode e deve ser discutido, incluindo a ortografia, mas incluir neste(s) debate(s) a necessidade de facilitar é fazer o jogo de quem anda a destruir, metodicamente, a Educação desde 2005: com Sócrates e suas ministras amestradas, havia a obsessão pelas estatísticas de sucesso, mesmo que fosse à custa da perversão de boas ideias como as Novas Oportunidades; com Nuno Crato, a imposição (e não a escolha) de um ensino profissionalizante é, entre muitos outros disparates, uma maneira de fingir que se resolvem problemas escondendo-os (porque continua a não haver, por exemplo, políticas sociais para os problemas educativos que nascem a montante da escola).

A ortografia não é uma questão menor no interior dos problemas educativos, porque vivemos numa cultura em que a escrita tem uma importância fundamental e, portanto, deve ter regras claras, consistentes e acessíveis a todos, graças, também, a um sistema educativo tão exigente como inclusivo.

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8 respostas a Quando a Esquerda é contra a Educação e contra a ortografia

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  5. SC diz:

    Mais do que simplismo, é uma afirmação total e completamente desprovida de significado! Faz tanto sentido falar de “democratização da língua” a proprósito da ortografia, como de “democracia aritmética” na simplificação de fracções…

    É triste verificar como se discute algo com esta importância com (não) argumentos de mesa de café. Será que Heloisa Apolónia alguma vez se terá interrogado sobre se a “simplificação” da ortografia teria iguais repercussões “democráticas” sobre a leitura & sobre a escrita? É que os linguístas e os especialistas em ciências cognitivas (como a Prof. Uta Fritch – há já uns anos – crêem que o cérebro se serve de estratégias diferentes para a escrita e para a leitura… sendo a ortografia fonética prejudicial para a leitura, que ganha com uma ortografia com mais informação do que uma mera indicação (aliás sempre incerta) sobre o som.
    Informação que a ortografia do acordo – que se funda em ideias velhas de 200 anos, não apenas não “democratiza”, como, destruindo informação e retirando-a do domínio do público, aristocratiza, já que tudo se torna menos acessível – e mais dependente de factores sócio-económicos: enquanto hoje é possível, por exemplo, detectar de imediato, a relação entre estupefacto e estupefacção se o acordês vingasse essa informação essa facilidade deixaria de existir no par “estupefacto” e “estupefação”…

  6. Miguel diz:

    Nunca é de mais esquecer que as línguas inventadas de Orwell (Newspeak) e Havel (Ptydepe) foram sátiras a regimes comunistas. A Esquerda adora mexer na língua, parte da sua tradição de engenheiros de almas. É por isso que fico espantado que este acordo tenha nascido do PSD, um partido que ideologicamente devia ser conservador e contra este tipo de radicalismos. Ainda mais espantado, mas feliz, que, apesar da Heloísa, o BC e PCP estejam contra o acordo.

  7. Reblogged this on O Retiro do Sossego and commented:
    Republico, porque embora escreva mais sobre comida, a educação e a cultura também fazem parte de uma alimentação saudável.

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