Acordo ortográfico: mais uma oportunidade para os deputados

 

Em 2008, a Assembleia da República aprovou aquilo a que convencionou chamar-se acordo ortográfico (AO90). Essa aprovação ignorou vários pareceres de especialistas e baseou-se em diversos mitos de que respigo apenas alguns exemplos:

Mito 1 – o AO90 é importante para a afirmação internacional da língua. Embora me preocupe mais a afirmação nacional da língua, não posso deixar de concordar com o que escrevia Luiz Fagundes Duarte em 2009: “todos nós sabemos que não é por causa de ser imposta, por lei, uma determinada “norma” gráfica que a Língua Portuguesa vai passar a ser mais falada ou mais prestigiada nos meios internacionais: os estrangeiros que não conhecem o Português nunca darão pelas diferenças gráficas existentes entre as duas variedades gráficas da nossa língua.”

Mito 2 – com o AO90, haverá edições únicas em todo o mundo lusófono. É certo que o texto do AO90 faz apenas referência a uma aproximação ortográfica, o que é, de qualquer maneira, um atestado de inutilidade passado ao próprio acordo, porque aproximação ortográfica já existia. Seja como for, pessoas com a responsabilidade de Evanildo Bechara não hesitaram em anunciar que, no Brasil e em Portugal, os livros passariam a circular em edições únicas, com a lusofonia transformada em mercado comum do comércio livreiro, o que é mentira, porque continua a haver diferenças ortográficas, sintácticas e lexicais. Recentemente, Richard Zimler demonstrou, involuntariamente, isso mesmo e a Editora Leya confirmou.

Mito 3 – A escolha do critério fonético e a consequente simplificação ortográfica facilitam a aprendizagem da escrita. Em primeiro lugar, deveria ter sido fácil perceber que não é possível alcançar uniformização com base na desigualdade, pelo que, tendo em conta a variedade de pronúncias, o critério fonético só pode ser fonte de diferenças. Para cúmulo, permitir que se escreva como se fala corresponde a abrir uma caixa de Pandora ortográfica. Finalmente, simplificar seja o que for na esperança de que alguém possa aprender é perverter a essência da Educação: a escola que é exigente com todos os alunos cultiva a verdadeira inclusão; a que facilita para melhorar os resultados dá origem a uma ilusão.

Entretanto, o caos ortográfico instalou-se. O que estava mal piorou. A norma ortográfica estável (mesmo que não perfeita) desfez-se e, hoje, instituições públicas e privadas produzem enunciados de que está ausente a ortografia, com o próprio Diário da República a produzir “fatos” e “contatos” em vez de “factos” e de “contactos”. Os instrumentos que se baseiam no AO90 não são uniformes e chegam mesmo a desrespeitar normas do alegado acordo.

Os jovens, sujeitos à instabilidade ortográfica, têm ainda mais dificuldades em saber como hão-de escrever, porque, entre a escola e os meios de comunicação social, contactam diariamente com a indefinição, obrigados a uma disortografia imposta pelo Estado.

Amanhã, os deputados irão apreciar a petição pela Desvinculação de Portugal em relação ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Graças aos peticionários, os representantes do povo voltarão a ter uma oportunidade de tomar uma decisão sobre esta matéria.

Alguns continuarão a agarrar-se aos mitos acima descritos e a outros igualmente vácuos ou dirão que o acordo já está a fazer o seu caminho. Escondidos do público, alguns lembrarão que é importante não perder a face. Estarão, portanto, a fazer politiquice e serão cúmplices de um dos maiores atentados contra a língua e contra a cultura portuguesas.

A fazer política estarão aqueles que souberem decidir com base em pareceres sérios e aqueles que estiverem verdadeiramente preocupados com a Polis, porque fazer política é, no fundo,  cuidar da Cidade, como nos ensina a etimologia, ou seja, a História.

Termino, aconselhando a todos a leitura dos textos de Rui Miguel Duarte e de Ivo Miguel Barroso. “Lede, ouvi e entendei.”

 

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2 respostas a Acordo ortográfico: mais uma oportunidade para os deputados

  1. Miguel diz:

    A respeito do MIto 2, se ainda não leu, recomendo o breve texto da Teolinda Gersão a respeito de como edições portuguesas continuam a sofrer mutilações no mercado brasileiro:

    “Só 2 exemplos: Se o AO é fundamental para que nos entendamos, então por que razão no Brasil os livros portugueses, escritos segundo o AO, são traduzidos para o português do Brasil como se estivessem escritos numa língua estrangeira? Por que razão “mesa de cabeceira” passa a “criado mudo”, “ficou pasmado” a “ficou pasmo” ,”foi apanhado pela polícia” a “foi pego pela polícia” etc. etc.?
    Por que razão a nós nunca nos passou pela cabeça traduzir para o português europeu Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Ruben Fonseca ou qualquer outro autor?
    Por que razão as livrarias portuguesas têm bancas de livros brasileiros, e a literatura do Brasil nos é tão familiar, quando o inverso não se verifica?”

    Amanhã vou estar no Terreiro do Paço a contestar o acordo, espero que mais gente participe:

    https://www.facebook.com/events/461388893987116/?ref=3&ref_newsfeed_story_type=regular

  2. Manuel Machado Pereira diz:

    Amanhã os Deputados em exercício terão a oportunidade e o dever de rectificar a posição dos seus antecessores de 2008, dizendo não ao AO90! Todos os Portugueses, que amam a sua Língua, estão à espera dessa resposta!…Não nos desiludam mais uma vez!…

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