Erro no exame de Português de 12º: o solo e o território

De acordo com os critérios de correcção da prova de Português de 12º ano, a resposta à questão 1.1. do Grupo II é “solo, chão” (é possível consultar a prova aqui).

No texto transcrito no Grupo II, a palavra “terras” ocorre cinco vezes.

Na primeira ocorrência (linha 10), a referência a elementos da Natureza, como as árvores, poderá, efectivamente, enquadrar o uso da palavra com a acepção de solo ou chão. A alusão a elementos construídos pela mão do homem pode, no entanto, corresponder a uma marca territorial, o que, no mínimo, cria uma ambiguidade.

A segunda ocorrência (l. 11) tem, inequivocamente, o sentido de chão ou de solo, uma vez que há uma referência à ausência de cultivo, com a inclusão de pormenores como o “cardo” ou a cor da paisagem.

Na linha 16, o autor retoma a palavra “terras” para a (re)caracterizar, como se pode notar através da utilização do verbo ser. No entanto, é ao advérbio “também” que cabe aqui um papel modificador: no parágrafo anterior as “terras” correspondiam a um determinado tipo de solo; neste parágrafo, passam a ser também outra coisa. Aliás, o uso da conjunção adversativa no início do parágrafo já antecipava uma mudança. No resto do parágrafo, as “terras” são transformadas em “paraíso de crianças”, ou seja, em território de brincadeiras, o que é, desde logo, incompatível com a ideia pura e simples de “solo”. Para além disso, note-se, a título de exemplo, como as crianças sentem que o seu território está a ser invadido, quando começam obras no seu local de brincadeiras.

Na linha 28, não fará sentido que “terras” corresponda à acepção de chão ou de solo, porque as “novas terras” que levam uma criança a esquecer antigos companheiros significa, mais uma vez, um novo território, o espaço encarado sob o ponto de vista afectivo.

Finalmente, “descobrir as terras”, na linha 30, também não remete para a materialidade dos solos, porque não é essa materialidade que as crianças procuram, antes desejam reencontrar os “paraísos” que o autor considera perdidos.

Assim, a estar correcta esta argumentação, parece-me que a questão 1.1. do Grupo II está mal formulada, tendo em conta que “terras”, ao longo do texto, pode ter dois significados sendo, ainda, de notar que “região” e “território” podem ter significados ligeiramente diferentes, o que poderia obviar à sua junção numa única resposta como sendo absolutamente equivalentes: na realidade, se é possível substituir, por vezes, “terras” por “território”, o mesmo não se aplicaria à substituição por “região”.

Como é óbvio, isso terá, inevitavelmente, consequências nas classificações. Na realidade, não será de espantar que muitos alunos possam ter o mesmo raciocínio, acabando por escolher, em consciência, uma resposta que lhes poderá sonegar meio valor, o que, parecendo pouco, não o é. Efectivamente, meio valor pode significar uma subida de um valor, o que é fácil de perceber se pensarmos, por exemplo, que uma classificação de nove valores e meio é arredondada para dez valores. Segundo parece, o GAVE não costuma aceitar alterações no que se refere a questionários compostos por perguntas de selecção, o que me parece incorrecto, tendo em conta que os prejudicados serão sempre os alunos.

Ainda uma nota final: esta situação, mesmo sendo excepcional, pode e deve suscitar uma reflexão sobre a utilização de escolha múltipla em testes e exames de Português: se é aceitável em questões gramaticais, não faz sentido quando se trata de interpretação textual. Imagine-se como seria diferente se a questão aqui analisada pedisse ao aluno que discorresse sobre o sentido da palavra “terras”, ao longo do texto, permitindo ao examinando uma argumentação que lhe está vedada pela escolha de uma entre quatro afirmações já formatadas.

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23 respostas a Erro no exame de Português de 12º: o solo e o território

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  2. Respondendo, ainda, ao Pedro Coutinho. Não está aqui em causa saber se há uma maioria a favor ou contra. O que, para mim, é decisivo é ficar ou não convencido pelos argumentos dos outros. De qualquer maneira, posso garantir-lhe que há muita gente a pensar como eu, desde alunos a professores (basta seguir o Pingback que liga este blogue ao “A Educação do Meu Umbigo”. Finalmente, embora não percebendo muito bem o seu último período, não estou a tentar impugnar coisa nenhuma: limitei-me a chamar a atenção para um erro que poderá ter prejudicado os alunos.

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  4. Pedro Coutinho diz:

    Depois de reflectir qual a escolha que poderia ser a mais acertada optei prudentemente pela resposta correcta “Solo, chão”. Tive com alguma relutância de apurar a que mais sentido embargava, e na minha sincera opinião ainda agora tenho como certeza de que é esta a resposta correcta. Erro não existe em qualquer parte do exame. Terra reverte-nos para local de lavoura, caracteriza o elemento central de espaço para a construção de algo, para actividade humana ou animal e para o próprio componente elementar da vida terrestre e até mesmo em variadas circunstâncias da vida marinha. É o principal substrato utilizado pelas plantas para o seu crescimento, é o habitat para a fauna do solo, e, como o próprio autor afirma, “O grande alimento das cidades é a terra” posteriormente assevera que à mesma terra é designada um delimitado espaço, uma superficie por nós humanos estatuida, “…, que, tomada no seu imediato sentido de superficie, ganha o nome de terreno, no qual, feita esta operação línguistica, passa a ser possivel construir.” Mais à frente refere, “As terras não se cultivavam. Faziam , inertes, as suas despedidas da fertilidade, suportavam aquela pausa intermédia entre a morte e a inumação. A sua grande vegetação, o seu grande triunfo de flora, era o cardo”, não é no território que todo o alimento, toda a fauna, toda a vegetação prospera. Território é simplesmente um conceito de um determinado lugar, pode até ser considerado de algo apenas subjectivamente decretado. Mas, na verdade genuína, é no solo que tudo isto incide. Território é já um complemento de determinado espaço, refere-se a um lugar estatuído e delimitado por regras estabelecidas, no entanto não deixa de ser em solo ou chão. Logo, não subsiste qualquer consistencia em subjugar em erro esta questão. O autor referia-se desde o principio do texto, ao solo, como essência primordial da vida e de todas a suas subsequentes actividades nele.

    • Ainda bem que escolheu a resposta considerada certa pelos critérios de correcção.
      É, para mim, e não só para mim, evidente que a palavra “terras” tem vários significados ao longo do texto, o que implicaria que duas respostas fossem aceitáveis. Isso, no que respeita à formulação de uma pergunta de escolha múltipla, é um erro.
      Entretanto, releia o último período do seu comentário e descubra como acaba por se contradizer: o solo como “essência primordial da vida” já não é apenas materialidade. Do mesmo modo, uma criança que descobre “novas terras” não está à procura de solo ou de chão, está em busca de novos amigos, novas relações, novos… territórios.

      • Pedro Coutinho diz:

        Já vi que não existe forma alguma para que considere a resposta “solo, chão” como a unica definitivamente correcta. Se com todos os comentários já postados em que evidenciam fundamentos que justificam claramente a resposta exacta e excluem a possibilidade de se ponderar “território ou região”, não vou ser eu a trespassar-lhe credibilidade ao que é efectivamente verdadeiro. Decerto que não terá qualquer lucro em prosseguir esta impugnação.

  5. Clara diz:

    na minha opinião (fiz o exame) o texto estava claro, atendendo que se referia ao sentido explorador das crianças da cidade, que o aproveitavam nos terrenos vazios perto dos prédios. a inicio duvidei, mas ao fazer uma letura global percebe-se que se fala dos terrenos juntos às moradias citadinas. Um Beijo

  6. Jorge Lopes diz:

    Na verdade, não posso concordar a 100% com os argumentos que foram apresentados. Vejamos.

    Concordo que a existência de duas alternativas “solo, chão” e “região, território” estão aqui como uma rasteira, pois na verdade qualquer uma das duas poderia estar correcta. A verdade é que território, quando visto como local, determinado terreno, pode perfeitamente ser também a solução correcta.
    Após ler o texto que vem no exame, chego à conclusão que “terras” está sempre ligado a “solo, chão, território”. E se é verdade que nalguma linha possa haver pouca dúvida (e eu concordo) que a resposta seria “solo, chão”, a verdade é que todas as outras são dúvidas. E essa dúvida acompanha-nos ao longo do texto, tanto que logo no ínicio se fala que “o grande alimento das cidades é a terra” e “enquanto nós vamos ali comprar o jornal, o terreno desaparece, e em seu lugar surge um imóvel”. Ora, o solo foi ocupado, mas o território também. O solo altera-se, mas o local/território também”.
    Ora, desde aqui percebemos que a terra é onde se cultiva o ganha-pão das cidades, logo “terras” são “terrenos”, com sentido de local, mas mais uma vez, também “chão” onde se cultiva.

    A única opção provável para resolver esta dúvida era verificar que a outra alternativa possuía a palavra “região” que está mais, globalmente, mais descentralizada do que as outras três palavras. Logo, se estivesse em situação de exame (estou a concluir o 12º, mas não realizei este exame) teria grande dificuldade em me decidir, mas deveria optar pela opção “solo, chão”, por verificar que é a que mais se aproxima globalmente da resposta correcta. Muitas vezes, em situações de avaliação, é assim que devemos proceder. Apesar de grande dúvida, escolher a opção que mais se aproxima ou aquela que analisando na totalidade.

    É de facto uma resposta que cria indignação, mas já sabemos que por vezes encontramos destas perguntas que dão mais que pensar…

    • Obrigado pelo seu comentário. É certo que muito dificlmente “terras” possa ser equivalente a “região”, mas é igualmente certo, na minha opinião, que, em duas ou três ocorrências, não corresponde a “solo”, podendo corresponder a “território” e considero simplista que se possa reduzir sempre espaço a solo (note a sinédoque/perífrase “solo pátrio”: nunca deixando de conter uma noção de espaço físico, está muito para além disso, porque o conceito de pátria é mais do que físico). Um dos problemas de base é estarmos na presença não de um texto informativo mas de uma crónica, ou seja, já em terrenos muito próximos da literatura, o que ainda torna mais absurdo a sujeição a um questionário de escolha múltipla. Note, ainda, que nenhuma das outras questões deste grupo levanta estas dúvidas. Uma questão de escolha múltipla pode e deve obrigar a pensar, mas a resposta tem de ser inequívoca. Não é o caso.

  7. b a d diz:

    Também franzi o nariz, quando li a questão pela primeira vez, mas sou obrigada a concordar que, mais do que um “erro” é uma “rasteira”: os territórios onde as crianças brincavam nunca seriam regiões, pois não? Mas podem sempre ser “solo, chão”.

    E que dizer do exame de 9º de LP, onde se confunde o significado de “data de nascimento” com o de ano de nascimento? Se, num documento oficial me pedirem a data do meu nascimento, contentar-se-ão se só lhes der o ano? Não me parece.

    Outra vez, não é coisa que, em boa verdade, altere classificações. Mas é exemplo de impropriedade lexical, não é? Podiam ter sido mais cuidadosos.

    • Se leu o meu texto, já sabe que não concordo consigo, face à variedade de significados que a palavra “terras” assume ao longo do texto. Seria, no entanto, aceitável que a pergunta se limitasse a uma das ocorrências. No último parágrafo, se está a falar do exame de 12º, deixe-me relembrar: subir meio valor pode corresponder a subir, na realidade, um valor, graças aos arredondamentos. Já agora, como declaração de interesses, não tenho filhos no 12º nem tive alunos a fazer o exame.

  8. Cara Maria

    A partir do momento em que, para lá de discordar, me acusou de sensacionalismo (não neste blogue, é certo), não obterá mais nenhuma resposta da minha parte. Argumentar e insultar são coisas diferentes.

  9. Se os resultados forem amplamente positivos, não será isso que irá modificar a minha opinião: a palavra “terras” não tem um sentido único, ao longo do texto. Assim, terão razão os que escolherem a hipótese “solo, chão”, tal como os que optarem “região, território”. Os primeiros terão meio valor, os segundos zero.
    Como é óbvio, um professor classificador responsável terá de ater-se aos critérios de correcção, mesmo que discorde deles.
    Finalmente, penso que o menos prudente é não emitir opiniões, desde que o emissor as considere pertinentes.

    • Estava a responder à comentadora Maria acerca da prudência, mas a resposta não ficou no sítio devido. Aproveito para reformular o último parágrafo, pois não corresponde ao que quero afirmar: o mais prudente é emitir opinões, desde que o emissor as considere pertinentes.

      • Maria diz:

        De acordo, desde que opiniões sejam formuladas como opiniões e não como factos.

  10. Maria diz:

    Que me desculpe o autor do texto, mas acho que leu o texto de Saramago muito à pressa e fez o mesmo com o enunciado do exame.
    Os significados que atribui à palavra «território» são muito confusos e instáveis. Uma consulta de dicionário seria clarificadora.
    Quanto a «também», dizem as gramáticas e os dicionários que «adiciona», «inclui»; não dizem que «exclui».
    O «Mas» estabelece um contraste, sim, entre os aspectos negativos das «terras» mencionados no parágrafo anterior e os aspectos positivos associados à experiência do «paraíso» vivida pelas crianças nas mesmas «terras».
    Atendendo ao momento, em que dezenas de milhares de alunos estão expectantes, acho este post incompreensível.

    • Está desculpada, embora tenha procurado não ler à pressa, por razões que não irei aqui clarificar.
      A palavra “território” pode ter várias acepções, como poderá verificar numa consulta de um dicionário: é claro a noção antropológica não está aí presente, embora se possa aproximar da acepção que lhe é conferida pela zoologia. É, para mim, evidente, que, nas três últimas ocorrências, as crianças se apropriam afectivamente de um espaço, comportando-se, ainda, e consequentemente, de modo “territorial”.
      Para além disso, mesmo a narratologia prevê que se possa falar em espaço físico, social e psicológico e não me parece que todas as ocorrências da palavra “terras” possam estar limitadas ao aspecto físico. Se um pedaço de terra é um espaço de brincadeira, quantas vezes as características intrínsecas do espaço físico passam despercebidas? Quantas vezes, na vida e na literatura, a percepção do espaço depende do estado de espírito ou da influência social ou da idade, mais do que das suas características físicas intrínsecas? Na minha meninice, cheguei a penetrar, com perigo da própria vida, em território comanche ou apache. Note, aliás, que, na sua argumentação, fala em aspectos negativos e positivos das “terras”, ou seja, em percepções e não nas terras em si.
      Nunca afirmei que “também” exclui, disse apenas que acrescenta e acrescentar, neste caso, é também modificar.
      Atendendo ao momento, em que dezenas de milhares de alunos estão expectantes, acho incompreensível que um enunciado de um exame possa, ainda que minimamente, induzir um aluno em erro (bastaria que tivesse sido indicada uma das ocorrências na pergunta para que não fosse possível nenhuma ambiguidade).

  11. Felicidade diz:

    Não concordo nada. Há limites para a interpretação, como diz o Eco.
    A escolha múltipla está bem formulada. Para ter o significado de “território”, em sentido figurado, também tinha de ter o significado de “região”, que, claramente, não tem.
    Não me parece haver erro nenhum e acho disparate estar-se já com uma parangona a dizer que o exame tem um erro.
    É preciso ver que se está a testar compreensão de leitura e não associação livre de ideias.

    • Se me explicar onde é que ultrapassei os limites da interpretação, agradeço. Mesmo que aceitemos que, ao fazer dupla com “região”, isso poderia limitar a significação de “território”, não sei como é possível afirmar, exactamente com base na compreensão de leitura, que todas as ocorrências de “terras” possam significar “solo”. Arrisco, ainda, que serão os melhores alunos a errar esta pergunta.

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